Por Alfredo de Assis Gonçalves Neto
Em uma de suas aventuras, Pedro Malasartes enfrentou o desafio de obter uma refeição gratuita de um mercador, conhecido por sua sovinice. Chegando à taberna do dito cujo, foi logo dizendo que queria uma pedra para fazer uma sopa. Ante o inusitado, o sovina acedeu. Malasartes apanhou a pedra e pediu uma caçarola, um pouco d’água e uma pitada de sal para fazê-la. Levou tudo ao fogo e, durante a preparação, solicitou outros ingredientes até que, pronta a sopa, devolveu a pedra para a natureza e tomou o suculento caldo.
O tema que dá título a este artigo é mero pretexto para justificar uma incursão mais ampla no conjunto de fatores que, a meu juízo, têm de ser versados para compreendê-lo.
A prática mercantil delineou ao longo dos tempos os vários tipos de sociedade, de acordo com as crescentes necessidades do mercado. Assim, da reunião da família em torno da mesma mesa e dividindo o mesmo pão (cum panis = “e companhia” ou “& Cia.”) para decidir os negócios do lar, nasceu a sociedade em nome coletivo ou solidária que, agregando terceiros, estranhos ao núcleo familiar, passou a “unir por contrato aquilo que os laços de sangue não uniam mais” (João Eunápio Borges). Do contrato de comenda, limitador dos riscos dos investidores nas expedições marítimas, advieram as sociedades em comandita e de capital e indústria, cada qual com suas particularidades, deixando pelo caminho a conta de participação, que não é sociedade. Do desenvolvimento da letra de câmbio e da emissão de títulos públicos por empréstimos feitos aos Estados, adveio o germe da sociedade cujo capital é dividido em ações; a sociedade limitada foi obra premeditada do legislador alemão, canalizada para atender o médio comércio e fazer frente, na região da Alsácia/Lorena, à invasão das sociedades anônimas francesas liberadas de autorização governamental para sua constituição. Da associação dos 28 tecelões ingleses de Rochdale, para proteger seus interesses negociais, surgiram as cooperativas. Basicamente, foram esses os estereótipos que delinearam os vários tipos societários que se consagraram ao longo dos anos no sistema do direito europeu-continental, os quais, com pequenas alterações, espalharam-se na prática mercantil universal e na legislação de inúmeros países, inclusive nas diretivas da União Europeia.
A tipificação das sociedades mercantis existe para permitir a todos conhecer, de plano e sem maiores perquirições, a estrutura do ser fictício com o qual contratam. Assim, à semelhança do que se passa com a pronta identificação de um título de crédito, cujo esforço é nulo para distinguir o que é duplicata e o que é cheque, por exemplo, qualquer pessoa deve ter facilidade para saber o que significa relacionar-se com uma sociedade em nome coletivo ou com outro dos tipos societários. Por isso, é severa a exigência de que a identificação da sociedade esteja contida no próprio nome empresarial, de modo que não possa haver dúvida que se está, v. g., diante de uma sociedade limitada (ARTES GRÁFICAS BRASIL LTDA.) e não de uma sociedade anônima (ARTES GRÁFICAS BRASIL S. A. ou CIA. DE ARTES GRÁFICAS BRASIL).
O Código Civil brasileiro de 2002 aderiu à tipicidade que já havia sido adotada pelo velho Código Comercial oitocentista; contemplou, basicamente, esses mesmos tipos societários, optando por apagar o tratamento próprio da sociedade de capital e indústria para, em contrapartida, tratá-la como subespécie suscetível de ser adotada por qualquer das sociedades nas quais os sócios ou algum deles fossem responsáveis subsidiários pelo cumprimento das obrigações sociais.
No rol dessas sociedades, voltado para a unificação das obrigações, referido Código acrescentou a sociedade simples, em substituição da sociedade civil, que eliminou, conquanto não haja qualquer correspondência entre elas. Como sabido, a sociedade simples foi criada pelo Código Suíço das Obrigações para servir de berço às sociedades que não fossem tipificadas, mas, no Brasil, além de se erigir em tronco comum das demais sociedades, foi regulada como um tipo próprio (conquanto impróprio, como apontei em comentários a respeito).
Ao participar da Comissão do Projeto de Código Comercial do Senado Federal, apesar de muito bem acompanhado, fiquei vencido na aprovação de proposta de eliminação das sociedades em comandita simples e por ações. Prevaleceu o entendimento de terem caído em desuso, pelo que não mereceriam mais figurar em nossa legislação. Houve, inclusive, quem sugerisse a extinção da sociedade em nome coletivo pela mesma razão e até quem propusesse um tratamento unitário para as sociedades em geral.
O problema é que, ao excluir um dos tipos legais, o legislador estará impedindo o mercado de ter mais opções para estruturar o desenvolvimento das atividades econômicas no país. E o argumento de que não estão mais em uso cai por terra quando se rememora que a sociedade em conta de participação, quase esquecida até meados do século passado, ganhou adeptos e tem sido amplamente utilizada nos dias atuais. Também a sociedade de capital e indústria, rifada, segundo alguns, por equivocada compreensão da interpretação da legislação trabalhista, revigorou na sociedade simples com sócios prestadores de serviço, notadamente entre advogados.
Na verdade, o desuso das comanditas e, bem assim, das demais sociedades de pessoas acima referidas, decorreu do Decreto n. 3.708/1919 que, ao regular as sociedades por quotas de responsabilidade limitada, não previu capital mínimo nem valor mínimo de quota de participação, o que fez com que ela não ficasse reservada, como na origem se deu, para o médio comércio. Com isso, a limitação da responsabilidade de todos os sócios provocou o abandono dos outros tipos societários e o aparecimento de sociedades fantasmas.
Não é esse, porém, o quadro que se apresenta em outros países, onde as sociedades em comandita continuam tendo grande adesão. Por que não imaginar uma sociedade de médicos, cuja responsabilidade profissional tem caráter ilimitado, administrada por eles (comanditados), mas com sócios investidores, restringindo seu risco às suas aplicações (comanditários), como se dá na França, por exemplo?
O que se nota é uma tendência de não dar grande importância à tipicidade e isso tem provocado no Brasil (e praticamente só no Brasil) o desprestígio de um dos grandes pilares do direito societário, que é a limitação da responsabilidade dos sócios – o que é notado, com surpreendente intensidade, no âmbito do direito do trabalho e do direito tributário –, com grande abertura para a malsinada desconsideração da personalidade jurídica nos demais ramos do direito. Também nas operações de vulto econômico (v. g., grandes obras e financiamentos), isto é, precisamente naquelas em que deve valer a limitação da responsabilidade dos sócios, porque destinada à proteção de seu patrimônio pessoal, nota-se que a prestação de garantia pessoal dos sócios e administradores das sociedades nelas envolvidas passou a ser regra implícita, senão um inafastável pressuposto para a celebração dos respectivos contratos. O mesmo fenômeno está a atingir as sociedades anônimas, a ponto de serem encontradiças atas de assembleias gerais com deliberações de alteração do quadro societário.
Mas a pior situação é observada no quadrante das limitadas. Sua insuficiente regulação no Brasil, conquanto elogiada por conferir ampla liberdade para as avenças sociais, deu margem, igualmente, a inúmeras discussões acerca do regime jurídico a elas aplicável. Dentre as várias polêmicas, havia a referente ao alcance do art. 18 de sua lei de regência, que determinava fossem observadas, “no que não estiver regulado no estatuto social, e na parte aplicável, as disposições da lei das sociedades anônimas.” Da acirrada divergência sobressaiu e se pacificou a orientação de ser a Lei do Anonimato somente supletiva e não substitutiva do regime jurídico das sociedades por quotas de responsabilidade limitada, o qual, segundo se definiu, era complementado pelos dispositivos do Código Comercial.
Agora, o que se tem é a regra do art. 1.053 do Código Civil estatuindo que a sociedade limitada, nas omissões do capítulo que lhe é próprio, rege-se pelas normas da sociedade simples; no seu parágrafo único é disposto que o contrato social pode prever sua regência supletiva pelas normas da sociedade anônima. Ao que parece a discussão voltou à tona. Ora, regência supletiva não significa regência substitutiva ou criativa. Por isso, o regime jurídico da sociedade limitada é aquele que se contém nas regras que lhe são próprias, complementado pelas que tratam da sociedade simples. A opção pela regência supletiva da Lei do Anonimato só pode ocorrer no que aí não estiver regulado e, mais que isso, no que for compatível com o regramento da sociedade limitada (participação nos lucros pelos administradores, por exemplo).
Na sociedade limitada os sócios estabelecem vínculos societários entre si, tanto que, exemplificativamente, respondem solidariamente pela integralização do capital social e pelo valor dado aos bens que são aportados para sua formação. A participação do sócio no capital social identifica-se por uma relação jurídica emanada do contrato social, que o vincula com a sociedade e com os demais sócios. A quota social é, portanto, o direito a essa participação, isto é, o direito ao bocado da sociedade que toca a esse sócio.
Já na sociedade anônima o acionista não tem qualquer vínculo com os demais; seu nome não figura sequer no estatuto social e, para se conhecer quem é acionista, é necessário consultar o livro de registro de ações nominativas ou a instituição financeira depositária das ações escriturais. O desprendimento do acionista em relação aos seus pares é tal que a estrutura da companhia propicia a emissão das hoje proibidas ações ao portador e endossáveis, as quais ensejavam, como ensejam em outras legislações, um total anonimato, com o qual é identificada a própria sociedade (certamente em homenagem a seus desconhecidos sócios, porque desconhecida ela mesma não o é).
Grande parte da doutrina considerava a ação – e alguns ainda a consideram – como título de crédito. Aliás, é como vem tratada em muitos países. Há quem sustente que, não se materializando mais no papel (a emissão de certificados tornou-se letra morta), a ação deixou de ter essa natureza. Contudo, é desnecessário maior aprofundamento nessa questão, visto que ninguém nega à ação a natureza de título destinado à circulação: título de legitimação, de massa, corporativo, valor mobiliário etc. – ou seja, título circulante, vinculado ao estatuto, que outorga os direitos nela se aglutinam a quem quer que legitimamente se apresente como seu titular (proprietário) ou fruidor.
Em suma, a ação legitima seu titular ao exercício dos direitos que nela são estatutariamente incorporados. Portanto, se ela confere o direito de eleição em separado de um administrador, qualquer acionista que venha a ser seu titular passa a ter o direito de se autoeleger para o cargo ou de escolher quem o ocupe. A função da ação, mesmo em ambiente virtual, é circular como valor mobiliário, seja no mercado de capitais, seja em operações diretas entre particulares, tanto que, embora admitindo restrições à circulação, como o direito de preferência em sua aquisição, a lei veda aquelas que impeçam sua plena negociação. Nessa linha é que se compreendem os atrativos, vantagens ou privilégios, que estimulam a circulação desse título, eventualmente compensáveis com a perda de alguns direitos, indiferentes aos interesses de quem o adquire.
A sociedade limitada não emite títulos. Não possui partes que se destaquem do contrato social para ser negociadas separadamente, pois dele não se desgrudam nem circulam, mesmo quando prevista, excepcionalmente, a livre transmissão da participação societária. E não há como ajustar que a quota carregue consigo algum direito, tanto que, se a algum sócio é conferida uma regalia, como a de ser administrador, a alienação de sua quota ou de suas quotas não leva o direito ao cargo para o adquirente. Os herdeiros de sócio falecido, se não ingressarem no quadro social por herança de suas quotas, recebem os direitos patrimoniais que o morto possuía, sem a menor possibilidade de reivindicar os de natureza pessoal, que também compunham a participação societária (quota) herdada. Para se atribuir ao sócio alguma vantagem ou prerrogativa – e isso é casuisticamente possível (como receber dividendos em percentual maior do que o decorrente de sua parcela de participação ou ter rateio diferenciado no acervo social) – faz-se necessária uma disposição contratual conferindo-a diretamente a ele, e não às quotas que ele possui.
A quota social, como parcela do capital social, tem a função de medir o poder político do sócio e de determinar seus direitos não expressamente regulados no contrato social. Na sociedade limitada destaco o direito de voto, que de nenhum sócio pode ser retirado, eis que as disposições sobre as deliberações sociais sempre tomam o capital social como universo votante, totalmente distinto de capital votante – expressão só compatível com o regime jurídico da sociedade anônima, na qual o direito de voto, em casos pontuais, pode ser suprimido em relação a certas matérias e alocado em assembleias especiais. E não se diga que é possível estender essa restrição legal à sociedade limitada, pois norma limitativa de direito não pode ter aplicação ampliativa.
Muito poderia ainda ser dito. Todavia, é impossível, com poucos temperos, aviar uma sopa que nos forre plenamente o apetite. O que importa é que ela já sirva para não nos precipitar na busca de ingredientes que podem ser prejudiciais ao organismo jurídico.
Ah, sim, e as quotas preferenciais? Penso que, enquanto não for criado o subtipo de sociedade anônima simplificada, o melhor e mais prudente é lhes dar o mesmo destino da pedra, devolvendo-as à prateleira das ideias.