A herança digital no anteprojeto do Código Civil
Por Eloise Caruso Bertol
Os avanços tecnológicos inerentes à sociedade atual têm trazido à luz um debate no âmbito das sucessões que diz respeito ao patrimônio digital, mais especificamente, àquele que integra a herança.
Consoante a doutrina de Maria Berenice Dias, a chamada “herança virtual” abarca os bens digitais do falecido, definidos por ela como “um conceito aberto que enquadra quaisquer bens informacionais intangíveis associados a contas on-line”.[i] Segundo a autora, eles podem ser de conteúdo econômico (como contas financeiras), sem conteúdo econômico (a exemplo das redes sociais) ou ainda de caráter misto (como é o caso dos direitos autorais).
Dada a ausência de maior previsão legislativa sobre o tema no que concerne ao direito sucessório, o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) editou o Enunciado de nº 40, segundo o qual “a herança digital pode integrar a sucessão do seu titular, ressalvadas as hipóteses envolvendo direitos personalíssimos, direitos de terceiros e disposições de última vontade em sentido contrário”[ii], em compasso com as previsões da Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD).
No mesmo sentido, o anteprojeto que visa a reforma do atual Código Civil, aprovado em abril deste ano e enviado ao Senado por uma comissão de juristas especializada nos temas em debate, inseriu um novo livro na legislação em questão, denominado “do direito civil digital”, que pretende regular a face virtual da vida civil.
No primeiro capítulo, que versa sobre as disposições gerais da atualização, menciona-se o objetivo de fortalecimento da autonomia privada e preservação da dignidade das pessoas (com especial destaque aos direitos da personalidade), além da proteção do seu patrimônio no ambiente digital – o que inclui o acesso e anteparo aos seus dados.
O capítulo quinto, responsável por regular o patrimônio digital, define-o como “o conjunto de ativos intangíveis e imateriais, com conteúdo de valor econômico, pessoal ou cultural, pertencente a pessoa ou entidade, existentes em formato digital”. Dentro desse rol não taxativo, incluem-se dados financeiros, senhas, contas em mídias sociais e plataformas correlatas, criptomoedas, tokens, milhagens, além de outros conteúdos como fotos, vídeos e textos.
O texto possibilita a transmissão hereditária de dados e informações virtuais, a qual pode ser garantida por testamento. A manifestação deve ser expressa e pode versar sobre o desejo de exclusão de contas ou sua conversão em memorial, como permitem algumas plataformas atualmente. Na falta de manifestação, os sucessores legais têm a faculdade de dispor sobre as duas possibilidades.
Segundo o projeto, é possível ainda a nomeação de um administrador digital sobre esses bens (art. 1.918-A, § 1º), o qual pode ser escolhido pelo testador. O art. 1.881 passa a prever a alternativa de manifestação física ou digital do indivíduo sobre sua vontade, sendo dispensada a assinatura quando se tratar de bens digitais e a declaração se der por vídeo.
Percebe-se uma preocupação com a proteção da vontade e dos dados pessoais do de cujus, com especial destaque à sua privacidade, ante a relevância que o ambiente cibernético possui para fins de armazenamento destas informações. Logo, a atualização da legislação pretende dispor expressamente sobre o sigilo das comunicações, da intimidade e das mensagens privadas, que não podem ser acessadas pelos herdeiros, salvo declaração expressa do autor da herança ou autorização judicial, dentre os limites da decisão, conforme novo art. 1.791-B.
Na mesma linha, propõe-se a inclusão do art. 10-A na Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet) para determinar um prazo de exclusão dos dados virtuais no caso de falecimento da pessoa sem herdeiros (salvo quando houver disposição expressa em sentido contrário) e a eliminação das mensagens privadas em até um ano após a abertura da sucessão (exceto se existir manifestação do de cujus ou decisão judicial em contrário).
Consoante disposto no anteprojeto, também “integra a herança o patrimônio digital de natureza econômica, seja pura ou híbrida, conceituada a última como a que tenha relação com caracteres personalíssimos da pessoa natural ou jurídica”. Assim, propõe-se a criação do art. 1.791-A para prever que os bens digitais do falecido que possuem valor econômico integram a herança.
Do mesmo modo, houve alteração no art. 83 para incluir o inciso IV, que considera os conteúdos digitais dotados de valor econômico como bens móveis, dispositivo que trouxe certa divergência por aqueles que entendem que os bens digitais deveriam corresponder a uma categoria nova.[iii] Ademais, no caso do falecimento do autor, passa a ser atribuição do inventariante – ou qualquer herdeiro – a informação de existência de bens de titularidade digital, assim como seus elementos identificadores (art. 1.791-C).
Conforme se observa, há uma vasta preocupação em regular o tema na atualização do Código Civil. Isso porque já se admite em larga escala a transmissibilidade do patrimônio virtual, em vista da sua relevância na composição atual da sociedade, a despeito da existência de uma significativa lacuna legislativa, que pouco ou nada prevê sobre o impacto das novas tecnologias na vida civil.
[i] DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022. p. 354.
[ii] Disponível em: https://ibdfam.org.br/conheca-o-ibdfam/enunciados-ibdfam. Acesso em: 28 jun. 2024.
[iii] PAULA, Ana Cecília Frota de; SANTOS, Jéssica Guedes. Relatório de Pesquisa Herança Digital: atualizações necessárias no Código Civil de 2002. Instituto de Tecnologia do Rio. Rio de Janeiro, 2024.